Sessão de 14 de
Novembro de 2013, Cristina Picanço e Luísa Sousa
Book club
Part 5 - Observing Together: Communities
" Observing Together: Communities” (Introduction), p. 369-371
- Daniela Bleichmar, "The Geography of Observation: Distance and Visibility in Eighteenth-Century Botanical Travel", p. 373-395
- J. Andrew Mendelsohn, "The World on a Page: Making a General Observation in the Eighteenth Century", p. 396-420
- Anne Secord, "Coming to Attention: A Commonwealth of Observers during the Napoleonic Wars", p. 421-444
in Lorraine Daston & Elizabeth Lunbeck (eds.),
Histories of scientific observation, (Chicago/London: The University of Chicago Press 2011).
Nota sobre os autores
Daniela
Bleichmar é professora associada no departamento de História e
História de Arte da Universidade da Califórnia, especializada em
História da Cultura Visual e das Ciências Naturais na Europa e na
América espanhola, no período 1500-1800.
O seu
trabalho centra-se na história do império espanhol e início
da Europa moderna, a produção e utilização de material visual na
ciência, a história da coleta e exibição e a história do livro e
da impressão.
A sua
investigação e interesses de ensino incluem interações
entre arte e ciência no início do período moderno; cultura visual
e material na América espanhola e na Europa moderna (early
modern), a história da Península Ibérica, da América
espanhola e do Mundo Atlântico, a história do colonialismo,
imperialismo e trocas globais; a história de recolha e exibição; a
história da imprensa, livros e leitura e a história da viagem.
Tem uma
série de publicações entre livros, capítulos ou artigos
relacionados com estes temas, das quais se destacam:
Bleichmar,
D. (2012). Visible Empire. Colonial
Botany and Visual Culture in the Hispanic Enlightenment.
University of Chicago Press.
Bleichmar,
Daniela and Peter C. Mancall (Ed.). (2011). Collecting
across Cultures: Material Exchanges in the Early Modern Atlantic
World. Philadelphia, PA: University of
Pennsylvania Press.
Bleichmar,
Daniela; DeVos, Paula; Huffine, Kristin; and Sheehan, Kevin (Ed.).
(2008). Science in the Spanish and
Portuguese Empires (1500-1800).
Stanford University Press.
Bleichmar,
D. (2007). “Atlantic Competitions: Botanical Trajectories in the
Eighteenth-Century Spanish Empire”, Science
and Empire in the Atlantic World /
Routledge, pp. 225-252.
Bleichmar,
D. (2007). “Training the Naturalist’s Eye in the Eighteenth
Century: Perfect Global Visions and Local Blind Spots”, Skilled
Visions. Between Apprenticeship and Standards/Bergahn
Books, pp. p. 166-190.
J.
Andrew Mendelsohn estudou em Harvard e Princeton, foi professor
no Imperial College de Londres, onde coordenou o Centro de História
da Ciência, Tecnologia e Medicina. Atualmente é professor no Queen
Mary University of London, colaborando também com o Instituto Max
Planck para a História da Ciência em Berlim.
Dedica-se
actualmente ao estudo do desenvolvimento da pesquisa (ou inquérito)
fora das ciências - na governança e na produção. O seu foco atual
é a observação e raciocínio de médicos nos seus papéis
jurídico-administrativos. Orienta doutorandos em diversas áreas
(Governança, especialistas e públicos na Europa moderna e início
da era moderna; A ciência, a política e a política de saúde e
doença, séc. XIX-XX, História do inquérito, História das
Ciências médicas , humanas e vida).
As
publicações mais relevantes sobre a história da observação
científica são:
“The
Microscopist of Modern Life”, Osiris
18 (2003): 150-170
“Lives
of the Cell”, Journal of History of
Biology 36 (2003): 1-37.
Anne
Secord é investigadora afiliada do Departamento de História e
Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge.
Os seus
interesses de investigação estão relacionados com práticas
de história natural, história da ciência popular do século XIX
(particularmente na Grã-Bretanha), educação científica e
compromisso entre a classe trabalhadora e a ciência, horticultura,
medicina e consumo no século XVIII.
Tem uma
série de publicações nestas áreas, sendo de destacar:
'Pressed into service: specimens, space, and
seeing in botanical practice', in David N. Livingstone and Charles W.
J. Withers, eds, Geographies of
Nineteenth-Century Science. Chicago:
Chicago University Press, 2011, pp. 283–310.
'Coming to attention: a commonwealth of observers
during the Napoleonic Wars', in Lorraine Daston and Elizabeth
Lunbeck, eds, Histories of
Scientific Observation. Chicago:
Chicago University Press, 2011, pp. 421–44.
'Botany
on a plate: pleasure and the power of
pictures in promoting early nineteenth-century scientific
knowledge', Isis,
93 (2002), 28–57.
Resumo dos capítulos
Part 5 – Observing Together: Communities
Nesta
última parte do livro é chamada a atenção para a componente
coletiva do processo de observação científica e da criação de
comunidades a ela associadas, comunidades estas que já existiam nos
tempos mais remotos, quer se tratasse dos astrónomos da Babilónia,
dos marinheiros que interpretavam os sinais durante as viagens ou dos
agricultores que previam o tempo ao longo de várias gerações. Mas
com a entrada no período moderno, houve a necessidade de organizar
estas comunidades, de as estandardizar. Os capítulos aqui discutidos
ajudam-nos a perceber como estas comunidades se organizaram para
recrutar, disciplinar, motivar e coordenar os diferentes
observadores, com consequências no tipo de observações produzidas.
Há a constante analogia entre a natureza e a sociedade no que diz
respeito às práticas de observação.
Quadro resumo de tópicos dos três capítulos
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Capítulo 15
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Capítulo 16
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Capítulo 17
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Disciplina e objeto de estudo
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Botânica; imagens
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Meteorologia e Medicina, produção de
observações gerais (ou generalizações)
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Botânica marinha; estudo das algas (tentativa de
definição de taxonomia e estudo do processo de reprodução)
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Atores
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naturalistas (botânicos) viajantes ou em missão
nas colónias, naturalistas (botânicos) na metrópole,
correspondentes, artistas; (imagens)
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médicos de província, redatores, membros da
Real Sociedade de Medicina (questionários, o papel e a tinta)
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naturalistas, evangélicos (a costa inglesa,
algas), exército
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Lugares
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Império Espanhol, Madrid, Jardim Real Botânico
Migas Calientes (Madrid), Nova Granada (América do Sul),
gabinetes e campo, Natural History Cabinet, a Farmácia Real, e
vários hospitais reais e navais.
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Paris; Real Sociedade de Medicina; Academia de
Ciências, Artes e Letras de Dijon (província); Observatório de
Montmorency, perto de Paris; gabinetes dos médicos da província
francesa
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Costa inglesa (Norfolk, Cornualha), Acton Castelo
(na costa da Cornualha) do gentleman John Stackhouse)
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Período
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Segunda metade do século XVIII (segue uma missão
em particular, a do Mutis)
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Anos setenta e oitenta do século XVIII
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Final do século XVIII, início do XIX (guerras
revolucionárias e napoleónicas entre a França e a Inglaterra)
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15 – “The Geography of Observation: Distance and Visibility in Eighteenth-Century Botanical Travel” – Daniela Bleichmar
Neste
capítulo a autora aborda a relação entre a observação científica
e o império espanhol, tendo como exemplo as missões dos botânicos
espanhóis e posterior produção de imagens de plantas do novo
mundo, no século XVIII, onde não são descurados os interesses
económicos e científicos (
Big business and big science).
Trata também da construção do conhecimento à distância – como
calibrar os olhos e mãos destes viajantes, artistas e botânicos
(Empirismo coletivo, redes de observação de longa distância no
império espanhol, como observar à distância).
Modo
como a própria observação viaja
empirismo coletivo de longa distância depende da circulação de
objetos, palavras e imagens
estas últimas são um meio privilegiado de transportar o objeto e a
observação em si, encurtando a distância entre o campo e o
gabinete.
Relação
entre distância, visibilidade e invisibilidade
conflito autoria e autoridade.
Casimiro
Gómez Ortega, diretor do Royal Botanical Garden, recrutava
correspondentes e treinava os viajantes que iam nas expedições, num
controlo do campo a partir do centro (Madrid), de modo a aumentar o
prestígio da Botânica e aumentar a coleção do Jardim. Objetivos
taxonómicos e económicos (identificação de novas espécies e
comércio de especiarias) das missões na América e Filipinas
desejo comum a outros naturalistas, como Lineu.
José
Celestino Mutis (1732-1808), nascido em Cádiz numa família de
livreiros, estudou medicina e cirurgia, tendo trabalhado em Madrid
como instrutor de anatomia. Assistiu a aulas de Botânica no Royal
Botanical Garden of Migas Calientes. Principal naturalista do seu
tempo, na colónia de Bogotá (Colômbia), supervisionou um grupo de
artistas que produziu 6700 ilustrações de plantas. Foi professor de
matemática, astronomia e de filosofia natural (primeiro a lecionar
Copérnico e Newton na América espanhola), tendo participado na
reforma educativa após a expulsão dos jesuítas do território
espanhol em 1767. Não um simples observador, mas um expert,
disciplinado e metódico. A observação era parte daquilo que era,
um hábito e um modo de vida. Relacionado com atividades de coleta,
comparação, classificação, escrita e desenho.
O
naturalista como observador – análise de um retrato de Mutis –
caracterização da observação como um processo individual, um ato
solitário de concentração, um regime de atenção que requer
abstração das distrações mundanas, quase como o contexto atual de
observação religiosa.
No
entanto, Mutis fazia parte de uma rede internacional de naturalistas,
artistas, coletores, físicos e administradores coloniais e imperiais
por todo o globo. Este processo coletivo afetava a temporalidade e a
geografia da observação. A observação em história natural não
ocorria numa sessão ou local isolados, mas sim por extensos períodos
de tempo e em vários cenários (conversas, comparação, produção
de imagens). As imagens eram
o resultado dos múltiplos atos de observação em vários locais e
de diversos objetos! (corpo ideal)
Autopsia
Distância
como desafio para naturalistas, mas também oportunidade para viajar!
Redes
de observação imperiais e viagens científicas – experiência
de observação como resultado do treino ao longo da vida.
Interesses
e competição internacional económica e política que criaram
oportunidades aos naturalistas de apresentarem os seus serviços a
patronos interessados
Botânica como grande negócio e grande ciência no século XVIII!
Gómez
Ortega coordenou 7 expedições de história natural a vários locais
do império, com cerca de 15 naturalistas e quatro vezes mais
artistas! Em estreita colaboração com membros da administração
imperial projeto global!
Observação
e viagens ligadas! (objetivo da viagem era observar!)
observação presente nas narrativas de viagem e nos títulos de
vários trabalhos.
O
problema mais significativo com o conhecimento europeu da flora das
Américas era as imagens e descrições textuais incoerentes e
incompletas. Tinham de ter material mais exato e isso dependia dos
viajantes e ainda mais dos habitantes locais (viam todo o ciclo
temporalidade da observação).
Imagens
em movimento: transportar observações – Mutis enviou cerca de
250 espécies em herbário a Lineu entre 1767 e 1778, assim como
coleções de imagens; também para Gómez Ortega.
Herbolários
– coletores de plantas
Expedições
não só com fim comercial, económico e utilitário, mas também com
o de produzir representações visuais das plantas americanas.
(descrição de 500 plantas e produção de 6700 imagens!!!)
Uma
única imagem envolve uma estreita colaboração entre coletores,
botânicos e equipas de artistas, num processo de vários dias. Cada
imagem envolve não só a planta, mas múltiplas observações,
decisões, negociações e várias especialidades. Mutis não
trabalha sozinho, como a imagem inicial sugere, mas supervisiona uma
grande operação!
Cartas
de naturalistas referem o papel fundamental dos artistas, sob
autoridade dos naturalistas: os naturalistas são os olhos da
expedição, os artistas as mãos! As imagens produzidas são os
desejos dos naturalistas, não criações artísticas, pelo que os
naturalistas se consideram os verdadeiros autores das imagens.
Importância
dos livros na interpretação da triangulação
imagem-texto-espécimen.
Imagens
como ponto de partida para a exploração da natureza no século
XVIII, funcionando como instrumentos chave na produção de
conhecimento. (informação abstrata, aproximação das plantas).
História natural como disciplina essencialmente visual, baseada na
observação e representação de espécimenes longínquos.
Observando
à distância: geografia, autoria e rasuras – explorações
naturais do século XVIII caracterizadas pela tensão entre duas
tendências: impulso de mover, saber pela experiência vs.
incorporação do saber, comparação. As ilustrações estabelecem a
ponte entre estes dois impulsos, encurtando a distância entre o
gabinete e o campo, entre a Europa e o resto do mundo.
Antonio
José Cavanilles (1745-1808), diretor do Royal Botanical Garden
of Madrid entre 1801 e 1804 e correspondente de Mutis.
Olho e
mão trabalham coordenados, imagem produz texto.
Mutis
observou vários exemplares naturais ao longo dos anos e o seu
trabalho com um artista permitiu a criação de imagens que são o
resultado composto de todas essas observações, não contemplando a
geografia e a distância, nem o trabalho coletivo de observação a
longa distância.
Autoria
e prioridade coloca os naturalistas em competição
serem superados enquanto viajam
necessidade de comunicarem o que descobriram
correspondência! (a autoria não é de quem colhe sem examinar, é
de quem as dá a conhecer ao público…)
Dependência
naturalista gabinete vs campo (envio de material e publicação)
Cavanilles
é da opinião que os viajantes não são os melhores observadores,
mas sim quem está no gabinete a observar (espaço controlado).
O papel
das imagens como mediadores entre o campo e o gabinete, refletindo
não apenas a construção da observação em si, mas também todo o
seu contexto de produção (distância, tempo, atores, idealizações
– imagem feita a partir de várias plantas e segundo códigos de
leitura que permitiam o trabalho de classificação pelos
naturalistas de Madrid).
Os
esforços de tornar a natureza global visível envolvem sempre partes
invisíveis!
Nesta
secção, o segundo parágrafo da página 392 “Images played an
important part…” foi um dos que suscitou mais discussão. Quem
discordava da opinião da autora, considerou que em taxonomia é isto
mesmo que se pretende, pois tudo o que esteja a mais na imagem é
fonte de distração e todas as informações adicionais estão nas
descrições que acompanham as imagens. Na minha opinião (CP), a
autora refere-se especificamente aos casos dos quadros representados
neste artigo e não à taxonomia ou botânica no geral.
16 – “The World on a Page: Making a General Observation in the Eighteenth Century” – J. Andrew Mendelsohn
Como são as observações gerais sobre doença e clima construídas pela Real Sociedade de Medicina, sediada em Paris, em 1776?
Estas observações gerais (ou generalizadas) são construídas através de uma comunidade e através de técnicas escritas (o papel e a tinta) e técnicas de resumo e de sistematização da informação.
A Sociedade seguia a doutrina Hipocrática que relacionava o conhecimento do clima e as doenças, no sentido de determinar a constituição, ou seja, o tipo patológico dominante. A constituição dependia do predomínio nas doenças de um dos quatro fluídos corporais ou humores (o carácter das doenças) conforme proposto por Galénico, inflamatório (sangue), catarral (fleuma, expectoração), bilioso (bílis amarela) ou atrabiliário (bílis negra), tendo os médicos setecentistas pretendido relacioná-los com as observações do clima descritas de acordo com as quatro qualidades propostas por Aristóteles (frio, quente, húmido e seco). Pretendia-se criar instrumentos preditivos que ajudassem no tratamento das doenças, o que tinha motivações não apenas científicas, como económicas.
A coordenação da comunidade que fornecia informações médicas e meteorológicas era feita através da Real Sociedade de Medicina, sendo essa comunidade constituída, essencialmente, por médicos das províncias francesas, que enviavam os seus relatórios para a Sociedade, onde eram tratados. Para a construção de observações gerais havia o problema da quantidade de informação recolhida a nível médico e meteorológico (enviada pelos médicos de província, quinzenal ou mensalmente) e falta de uniformidade dessa informação, devido à falta de formação e ao amadorismo de quem fazia essa recolha. Estes relatórios eram então submetidos a um trabalho de redacção, que construía as referidas observações gerais. Partia-se do particular para o geral (não confundindo, contudo, com a criação de uma lei universal). Não se procurava um trabalho de classificação, mas de generalização (p. 402). O autor diz que isto foi possível não apenas pela existência desta comunidade mas também pelas técnicas de papel e de tinta entretanto criadas.
Estrutura do artigo
Para além da introdução e da conclusão o artigo tem quatro partes, cada uma relacionada às técnicas de “papel e tinta”: o extrato, o “précis” (uma precisão…… um resumo), a questão da quantificação (quantificação sem contagem, ou seja, quantificação adjetival ou adverbial) e as tabelas (ou a “folha dividida”). O autor pretende mostrar como estas técnicas de papel e tinta construíram a forma como se produziu conhecimento, ou seja, as observações gerais lidas e publicadas pela Real Sociedade de Medicina, em Paris.
O autor identifica três locais e níveis de construção da informação (p. 399):
- a troca de correspondência: “… a cultura e a prática de produzir observações científicas que pudessem ser trocadas e colecionadas era epistolar”;
- O “bureau” da Sociedade: “… [a cultura da] coordenação da produção científica e do inventário era administrativa”;
- a “Redacção” (rédaction – escrita): “… [a cultura] da sua avaliação, análise e síntese generalizante era editorial”.
A percepção na consulta dos manuscritos que ainda existem e que foram submetidos a este processo é a de que as vozes individuais desapareceram, dando lugar a um palimpsesto. A primeira técnica utilizada era o extrato (de extração de um registo paroquial de baptizado, por exemplo; um resumo). Mas o extrato não produzia observações gerais.
O trabalho de redacção era tanto feito na Real Sociedade de Medicina em Paris como no Observatório de Montmorency, perto de Paris, onde eram tratadas não apenas observações meteorológicas, como também informações nosológicas (relativas às doenças) e recorria a técnicas da escrita da observação médica (mais antigas) e a técnicas da escrita em tabelas da observação meteorológica (mais recentes). No entanto, qualquer destas técnicas passava pelo processo da extração repetitiva (um processo iterativo) durante o processo de redacção – o que por si, no entanto, não conduzia às observações gerais.
Esse trabalho seria facilitado com o “précis” (que era uma foram de extração da informação, mas realizada de maneira diferente) que preservaria informações que se perderiam no extrato, podendo levar à construção de observações gerais, ou seja, “observações que revelassem padrões gerais de doença, que preservassem detalhe suficiente para serem úteis, que aumentasse o poder preditivo e ajudasse a orientar o tratamento”. (p. 404)
Seguindo a doutrina Hipocrática e com a preocupação com o efeito na economia das epidemias e das epizootias, foi ordenado em 1775 (por Turgot, controlador geral das finanças) um inquérito via questionário médico, topográfico e meteorológico a ser distribuído pelos intendentes aos médicos da sua província (p. 397).
No ano seguinte (?) a Real Sociedade de Medicina lançou, através do seu secretário perpétuo, primeiro médico correspondente e principal redator (Vicq d’Azyr) um questionário que, ao contrário do anterior, não permitia que as respostas pudessem ser subjetivas, mas antes continha 37 questões específicas que orientavam a resposta (p. 404).
Através do questionário fornecido pela Sociedade, era feita uma estandardização da informação, sendo que as observações que eram aproveitadas eram aquelas que mais se aproximavam do discurso que as generalizações pretendiam produzir. Esse estabelecimento de standards, feito no “précis”, era levado a cabo com o estabelecimento de uma grelha de análise que seria aplicada às observações individuais (um stencil). “O aparente inócuo «précis» rompeu a unidade de conhecimento fundamental e que se poderia trocar, o observatio” (p. 406).
Nestes précis era usada uma quantificação sem contagem, que recorria a advérbios (frequentemente, raramente) ou a adjectivos (escasso, reduzido, frequente). Havia a procura de tendências.
Estas práticas de quantificação foram desenvolvidas ao longo do século XVIII na meteorologia, tendo sido estendidas a outros tipos de observação, como a médica. A elaboração de médias relativamente a categorias foram realizadas tanto na meteorologia, como na medicina, tendo sido estabelecidas relações entre elas, nomeadamente através da utilização de duas colunas paralelas, que constituíram a “folha dividida”. A folha dividida era um instrumento de correlação, justapondo fenómenos completamente diferentes.
Argumento final
O autor pretendeu mostrar como foram construídas as observações gerais e como as observações individuais que tinham mais probabilidades de serem apresentadas como casos particulares eram aquelas que mais se aproximavam da grelha de análise imposta pela “redação” às observações iniciais. Ou seja, para que os casos dos médicos de província fossem incorporados como exemplos particulares de observação, como ilustrações de uma observação geral, os médicos tinham de dominar determinadas técnicas de escrita.
17 – “Coming to Attention: A Commonwealth of Observers during the Napoleonic Wars” – Anne Secord
A autora
estabelece uma ligação entre o estudo das algas, as pessoas em
Inglaterra que se interessaram por isso, a aplicação de uma cultura
de observação e vigilância que já estava presente na história
natural e que foi reforçada pela situação de guerra com a França
(guerras revolucionárias e napoleónicas) e a sua relação com as
questões de classe, moral, religiosa e económica. Precisamente, o
título deste artigo fala da definição de uma competência de
atenção por uma comunidade de observadores durante as guerras
napoleónicas.
Estrutura
do artigo
O artigo
começa com duas citações, uma sobre a vontade de criação de uma
comunidade de botânicos marítimos das costas Leste e Oeste de
Inglaterra e outra com a comparação da organização taxonómica
com a organização do exército.
Para
além da introdução e da conclusão, o artigo tem as seguintes
subseções: “Todos como soldados” (ou “Cada um como soldado”),
“A ordem dos observadores”, “Um olhar atento” e “Mares de
pensamento”.
“Cada
um como um soldado”
É no
contexto macro das guerras revolucionárias e napoleónicas entre a
França e a Inglaterra (1793-1815), que segue como pano de fundo ao
longo do artigo, que a autora explica a criação (ou reforço) de
regimes de vigilância constante, que tanto se aplicavam à potencial
ameaça externa (os franceses), como à potencial ameaça interna (as
rebeliões das classes mais baixas provocadas pela crise social,
agravada pela guerra (os voluntários nos estratos mais pobres não
tinham emprego caso regressassem da guerra); ou pela simpatia dos
radicais desta classe pelos princípios revolucionários franceses),
como ainda à zona costeira (quer para o estudo das algas, quer pela
vigilância contra potenciais invasões).
Neste
contexto, há o desenvolvimento de uma autodisciplina e de uma
autovigilância que se enquadram num regime de atenção. Esta
atenção também é dirigida aos outros. Este regime de atenção
também tinha aplicações morais (por exemplo, os evangelistas e a
atenção à sua “alma”), de defesa (a atenção aos potenciais
invasores e aos espiões) e era já praticado pelos naturalistas.
O regime
de atenção tem particular cuidado com o aparente, com o engano das
aparências. A autora faz um paralelo entre o regime de atenção
sobre as classes mais baixas, consideradas desviantes, e o regime de
atenção a objectos que estão em zonas de fronteira, desconhecidas
(e por isso também temidas), como os charcos e os pântanos salgados
onde se encontravam as algas (que estavam entre “excremento” –
rejectamenta - do mar). Também as algas “enganavam” os
observadores (p. 425). Havia um escrutínio dos mundo social e
natural.
Esse
paralelo é feito afirmando que as práticas de observação, os
hábitos de comparação, classificação (ranking) e de
determinação de fronteiras usados na História Natural faziam parte
de hábitos culturais que eram de igual forma aplicados a espécies,
pessoas, espaços e nações (p. 423).
A autora
apresenta a dificuldade que era estudar algas e o que é que isso
representava (e como o interpreta):
- a
dificuldade de observar as algas (a sua vulnerabilidade devido ao seu
estado no mar e à sua alteração rápida quando retiradas do mar; o
seu aspecto era variável conforme a fase em que estavam
relativamente à reprodução);
Algas
necessitam de rápida observação, pois mudam rapidamente de aspeto
quando fora do mar.
dificuldade de observação in situ/ confundiam os reinos naturais
animal-vegetal. Observação parcial e fugaz, junto dos detritos do
mar.
- havia
muito pouco conhecimento sobre as algas: estava identificada a
necessidade de criar uma taxonomia, criticando o que tinha sido feito
por Lineu; estava a tentar perceber-se como funcionava a reprodução
nas algas. – (isto aparece na subseção seguinte);
- Havia
a necessidade de “estabilizar” o objecto de estudo antes de o
classificar e também de criar uma comunidade de botânicos marítimos
que cobrisse toda a costa inglesa.
fundamental estabelecer uma comunidade de observadores de costa para
estabilizar o objeto do seu estudo antes de fazer classificação,
para permitir reconhecimento por outros pares. A publicação dava
crédito à descoberta de novas espécies mas monitorizava a
observação em si.
Esta
comunidade e as suas técnicas e hábitos visuais sofrem com os
constrangimentos da situação de guerra.
Constrangimentos
da observação aprendizagem
de técnicas e hábitos visuais que caracterizam uma sociedade
particular, num período particular.
A
atenção do império devia ser redirecionada dos centros imperiais
para locais onde as coleções eram feitas ou onde novas formas de
conhecimento eram encontradas. Mais do que nas viagens de exploração,
a autora aqui centra-se nos observadores que não saíram da
Grã-Bretanha no período da guerra, nomeadamente os primeiros
investigadores de algas, para quem a linha de costa marcava, não só
a fronteira entre terra e o espaço desconhecido do oceano, como o
limite das técnicas estandardizadas de Botânica e a classificação
de Lineu confronto com a
ambiguidade.
“A
ordem dos observadores”
As
particularidades dos observadores marítimos e os cuidados que tinham
de ter na observação das algas, evitando fazer analogias com
plantas terrestres.
As algas
são ambíguas devido ao seu modo de reprodução e pelo meio onde
habitam, pois fora de água secam rapidamente e alteram as suas
características (cor, forma).
As algas
então tinham interesse económico para os estratos pobres (como
combustível, como forragem para os animais e como comida) e para a
indústria do vidro (entrava na fabricação da soda (kelp), e
cuja procura aumentou durante a guerra.
Os
diferentes observadores - os indivíduos
Manter
comunidade que nunca tinha estado junta mas que partilhava interesses
comuns!
Lilly
Wigg – sapateiro, professor, escriturário
Reconhecido
pela qualidade das suas observações sobre algas. Foi o primeiro a
tornar-se conhecido entre a comunidade de botânicos a fazer
descobertas no lixo do mar e nos pântanos salgados.
Dawson
Turner of Yarmouth – banqueiro que se interessou pelas algas e
publicou várias obras sobre este assunto. Apoiou e trabalhou com
Wigg. (vivia na costa Este – realizou observações na Norfolk
coast)
Há
casos, perfeitamente marginais nesta história, de militares com
interesse sobre as algas que aproveitaram destacamentos para zonas
costeiras para estudá-las (o caso de Robert Brown, que recolheu
algas quando esteve ao serviço militar na Irlanda, assim como o
Major Thomas Velley na costa sul de Inglaterra
a vigilância de uma nação em guerra pôde gerar um contexto
observacional que contribui para o estudo das plantas marinhas
cultura da vigilância defensiva); ou do regime de vigilância levar
à confusão de botânicos marítimos com espiões na Escócia (p.
429) – o que não autoriza o que é escrito na introdução à
Parte V do livro sobre este capítulo (dá-nos uma ideia enganadora
sobre o artigo).
A autora
vai fazendo o paralelo moral entre os naturalistas que iam procurar o
seu objeto de estudo, as algas, no meio do lixo do mar, e a moral
destes naturalistas (como o poeta George Crabbe) que comparavam este
estudo com a necessidade do sistema passar a tratar os pobres de
outra maneira (por exemplo, analisar as causas reais do aumento da
criminalidade, como a fome e outras consequências da guerra, em vez
de os estigmatizar).
“Um
olhar atento”
A
necessidade de definir e estabilizar o objecto de estudo – as
algas. O exame a todos os “indivíduos” da população de algas
foi uma necessidade identificada no século XVIII.
A autora
apresenta-nos o gentleman da Cornualha John Stackhouse, que
teve um papel fundamental no estudo da reprodução das algas, tendo
determinado, em 1797, que as algas eram plantas. Isso foi possível
graças às experiências realizadas, a partir de 1775, no seu
castelo na costa da Cornualha (onde tinha piscinas de água salgada
para o estudo das algas), ao uso do microscópio (queria imitar a
natureza através de experiências miméticas para observar os
fenómenos naturais) e ao “Calendário de plantas marítimas” de
Turner, que mostrou que muitas espécies de algas não frutificavam
antes de meados do Inverno, quando a maior parte dos botânicos já
não estava na costa.
Aqui há
uma linha ténue entre observação e experimentação (a realização
de experiências controladas com algas) que gostaríamos de discutir.
A autora
refere ainda a importância do contributo de outros observadores e da
separação entre acuidade visual e conceitos teóricos. A guerra
também afetou as experiências de Stackhouse, quando viajou para
Paris num intervalo de paz em 1802 e comentou o que, na sua opinião,
era o atraso francês relativamente à Botânica Marinha. Propôs
alterações à classificação de Lineu, publicadas em 1809, mas que
só circulariam em 1815; houve uma segunda edição em 1816, que foi
“ocultada” pela publicação reclassificação das plantas
marinhas do francês Lamouroux.
“Mares
de pensamento”
Os
valores morais e religiosos do evangélico Turner e os seus
princípios na prática da observação das algas. A ideia da
salvação moral através do despojamento, da privação, da
humildade (também científica), da fidelidade no casamento, da
autovigilância da alma e a contemplação da natureza como exercício
espiritual.
A autora
aqui também fala da comparação de observações entre as duas
costas, nomeadamente do tamanho das algas e da sua espessura, sendo
arranjadas medidas qualitativas para essa comparação (como
analogias com a espessura de penas de várias aves).
observação por comparação
variabilidade, ambíguo.
Contradições
na ambição de Turner: a ambição ou a fantasia de alcançar a
total visibilidade (a identificação e classificação de todas as
algas) e o discurso moral sobre a humildade, inclusive na ciência. A
esperança de encontrar a ordem porque a criação de deus não
poderia ser caótica… mas a aceitação do “mistério divino” e
dos limites do conhecimento humano.
princípios
morais e religiosos expressos em atitudes para com a natureza e
família (Turner) – observação do mar revelava o poder supremo de
Deus – necessidade de humildade e modéstia! A linha de costa
marcava a divisão entre o conhecido e o desconhecido, quer em termos
físico quer espiritual.
Conclusão
Analogia entre o natural e o social
taxonomia natural e social. Continuidade, tradição, permanência, progresso.
Observação combina performance e produto.
O retrato de uma comunidade em ação não é totalmente capturada pela noção de rede.
Aspectos transversais e questões sobre estes três capítulos:
- Observação como processo individual ou coletivo?
Pela análise do tipo de actores e dos locais pode inferir-se que apesar de o acto em si poder parecer isolado é dependente de uma rede.
A análise é feita a nível micro e meso da organização social, ou seja, dos indivíduos e também os grupos ou instituições.
- São as imagens atores neste cenário? (cap. 15)
- Legitimação da autoria? (transversal aos três capítulos)
- Importância do treino e contexto, da disciplina, da geografia, da distância? (a questão da distância, particularmente pertinente no cap. 15)
- Gabinete vs. campo (cap. 15)? Consultório vs. redação da Real Sociedade de Medicina (cap. 16)
- As observações são construções aceites pelos pares em comunidade (observação como construção é um elemento transversal aos três capítulos).
- Papel do Estado (cap. 15 e 16) ou da sua ausência (cap. 17) nos processos de observação.
- Observação: Como observar?
Condicionantes:
Quem a faz, o conhecimento que se pretende extrair, e a quem se quer fazer chegar o resultado da observação (ver especialmente o capítulo 15);
Modelos de conhecimento em construção e também a construção de standards.
A questão da autoridade/autoria e da legitimidade ao nível das observações e prioridade das publicações – o valor das observações (ver especialmente o capítulo 16)
No capítulo 16 é mais a construção da estandardização e normalização de técnicas escritas de observação (há uma fusão de autorias no papel do redator) – as técnicas escritas (o papel e a tinta) foram instrumentais no resultado produzido.
O contexto da observação, a oportunidade de observação.
Cap. 17 - Observação ligada a hábitos de vigilância (de si próprio e dos outros) que estavam já presentes nos hábitos dos naturalistas e que foram potenciados pela guerra e as suas consequências. Há uma ténue fronteira entre observação e experimentação.
Escala e aparelhos de observação:
Cap. 15 – lentes/ lupa – poder de observação dos olhos do naturalista
Cap. 16 - questionários
Cap. 17 - microscópio